"Em Geraldo o lírico é consecutado no encontro de culturas, temporal e espacialmente díspares, tais quais a entonação naso-labial lusitana e a paixão arraigada agreste, preenchendo de beleza as circunstâncias musicais e poéticas propiciadas. Acompanhar a sua voz é se expor a acidentes dadas as variações constantes que compõem o relevo a ser transposto, pela sua ânsia de chegar ao fim. Ignorá-lo, em vê-lo/ouvi-lo, é impossível, pois os sentidos gratificam-se alheios às vontades"
Erickson Luna, compositor
Reconheço muito mais a influência de Bethânia na minha voz. Quando morava em Portugal, 9 em cada 10 portugueses viam semelhanças entre meu canto e o de Ney Matogrosso, o que sempre considerei absolutamente implausível. Ouvi também Dalva, Orlando Silva, Elizete Cardoso, Sílvio Caldas. Depois é que fui ouvir Alceu, Quinteto Violado, Ednardo. Alceu eu adorava, achava ele muito moderno, com aquela banda maravilhosa e cheia de rapazes cabeludos... Marco Polo foi uma presença fortíssima , uma semente da mais radical iconoclastia na qual bebi fundo. A atitude dele me fascinava, como me fascinava Caetano, que vi pela primeira vez num show que ele fez no ‘Geraldão’ logo após o exílio. Naquele dia ,eu me lembro, mesmo sendo ainda um jovem na pré-adolescência, tive a exata sensação de que havia uma brecha, uma saída , um viés em meio ao horror da ditadura militar, que vivia então seu período de maior recrudescimento.
A família tradicional
Nasci numa família religiosa. Sou filho de pai e mãe portugueses e ambos eram católicos, minha mãe uma devota fervorosa. Ela morreu jovem, quando eu tinha apenas 5 anos, mas isso não me livrou da sombra rígida de todos os apelos e terrores cristãos. Como era uma criança meio rebelde, desde muito cedo fui percebendo os ‘sinais’ de que meu lugar depois da morte seria arder no fogo dos infernos e isso só fomentou em mim raiva, e gerou um processo interminável de culpa e uma enorme confusão, que anos e anos de terapia e depois mais 4 de análise apenas ajudaram a atenuar.
O campus universitário
Sou formado em Ciências Sociais pela UFPE. Sempre quis ser músico, cantar etc e tal, mas meu pai era meio arredio, queria que eu seguisse uma carreira mais ‘promissora’ e achava que música não era o melhor caminho. De qualquer modo, o curso me interessava, sobretudo porque quando entrei na universidade ( 1977 ) ainda vivíamos sob a ditadura e Sociologia era algo bem ‘alternativo’, do pessoal mais cabeça, mais ‘engajado’ politicamente, tinha muito cabeludo no curso e eu me sentia muito à vontade naquele ambiente meio transgressor. Eu também era cabeludo, fumava maconha, lia o jornal ‘Movimento’ com fervor religioso, andava de havaianas e bolsa de couro à tiracolo, ou seja, tinha o perfil exato para estar ali, embora fosse meio arredio àquela coisa de política estudantil, aqueles jargões que se usava nos discursos...eu sempre preferi o bar da Tripa e a radiola de ficha que tinha lá. Mas por conta disso tudo, acabei virando um autodidata , aqui e ali tive aulas de violão e de um modo mais sistemático fiz técnica vocal, mas boa parte do que aprendi na música foi com a vida mesmo, vendo e observando os outros fazerem, e depurando as coisas na marra, às vezes por osmose, outras tantas no meio da levada.
A utopia lusitana
Saí do Brasil em meados de 1990, logo no início do governo Collor. Acabávamos de sair do marasmo dos anos 80 e não havia nada de muito promissor pela frente. Eu era parte de um grupo de artistas que havia esgotado todas as possibilidades por aqui; (eu, Henrique Macedo, Valma Ruggeri, Cássio Sette, Zeh Rocha etc etc) estávamos de saco cheio, a cidade lançava um olhar desdenhoso sobre as coisas que se faziam por aqui enfim, era hora de cair fora e achei que Portugal seria uma boa alternativa tendo em vista que, como filho de pais portugueses, eu poderia requerer dupla nacionalidade, coisa que acabei fazendo e que facilitou bastante minha circulação pela Europa. Peguei Portugal numa fase de ótima empatia com a música brasileira e isso facilitou bastante a minha integração, mas também ao longo dos 9 anos que vivi por lá fui enchendo o saco do que fazia, essa coisa de uma visão meio estandardizada da música brasileira que se tem lá fora e que eu era obrigado a me amoldar, sob pena de perder os trampos e tal; isso foi gerando em mim uma insatisfação que culminou com a decisão da minha volta, no início de 1999.
A volta ao Recife
Era esperado que encontrasse uma cidade mudada, depois de 9 anos. Acho que Recife melhorou muito, o movimento mangue resultou entre outras coisas num reconhecimento por parte do público das potencialidades aqui existentes e tal, mas ainda há um longo caminho a percorrer. Falta um plano de apoio e incentivo mais sistemático por parte dos órgãos oficiais da cultura, faltam produtores que realmente invistam de forma ousada, criteriosa e sobretudo corajosa no elenco local, falta quebrar a hegemonia das rádios locais, que hesitam de modo descarado e cínico em executar a música que é feita aqui ( são raras e louváveis as exceções ), falta espaço na mídia como um todo, falta uma gravadora que tenha algum poder de fogo além de boas intenções, faltam enfim os canais por onde escoar a produção local, que é bastante prolífica.